PROCURADORIA-GERAL DE JUSTIÇA


Discurso em homenagem ao Dr. José de Arruda Silveira Filho, na cerimônia de inauguração de seu retrato na galeria de ex-secretários do Órgão Especial do Colégio de Procuradores de Justiça – dezembro de 2011. - Dr. Walter Paulo Sabella - Procurador de Justiça



Discurso em homenagem ao dr. José de Arruda Silveira Filho, na cerimônia de inauguração de seu retrato na galeria de ex-secretários do Órgão Especial do Colégio de Procuradores de Justiça – dezembro de 2011 (discurso pronunciado de improviso, gravado, transcrito e revisado pelo orador).

Em nome do Órgão Especial do Colégio de Procuradores de Justiça usou da palavra o doutor Walter Paulo Sabella (discurso pronunciado de improviso, gravado, transcrito e revisado pelo orador):
Raras vezes acedi, com tão grande prazer, a um convite para saudar alguém. É certo, já o fiz antes, mas nem sempre tão prazerosamente quanto agora. E a singularidade do sentimento de satisfação pessoal que me toma por esta oportunidade auspiciosa e feliz decorre, fundamentalmente, de duas razões: primeira, os incontroversos méritos do homenageado; segunda, os laços de amizade que nos irmanam numa longa, estreita e amistosa convivência. Prescindível seria dizê-lo: é sempre aprazível saudar os merecedores e os amigos; igualmente aprazível é saudar os amigos, ainda que não merecedores; mas nada se compara à satisfação de saudar os amigos merecedores, como aqui se dá.
Homenagens como esta, usualmente, requerem, como parte da ritualística, uma saudação em nome dos presentes. Não apenas o ato cerimonial do descerramento do retrato, nem só a fala do próprio homenageado, mas também a de alguém que seja o porta-voz do sentimento de estima que se lhe devota. Por outras palavras, um discurso. Não se perca de vista, todavia que, se há, no léxico de nossa língua, vocábulo dotado de polissemia abundante é o signo linguístico ‘discurso’. Dele se valem a retórica, a teoria literária, a lógica, a ciência política, a semiótica e outros ramos do conhecimento, ora atribuindo-lhe denotação puramente técnica ora conferindo-lhe conotações menos específicas, algumas vezes até pejorativas, quando, por exemplo, se cuida de uma fala longa, fastidiosa e fatigante, submetendo à prova a paciência dos ouvintes. Daí que alguém rico em senso de humor classificou os discursos, não quanto ao fundo temático ou ao poder de persuasão, o que nos levaria às espécies dos discursos religiosos, políticos, sindicais, acadêmicos, forenses, ou ainda convincentes, não convincentes, sedutores, inócuos. A classificação dicotômica a que me refiro tomou em linha de conta a duração, dizendo haver duas espécies, apenas, de discursos: os discursos longos e os discursos bons. E na dualidade de gêneros já se formula um juízo crítico-valorativo sobre os pronunciamentos demasiado extensos.
De minha parte, antecipo a mesma confissão feita por Camões logo no derradeiro decassílabo da segunda estrofe, do Canto I, dos Lusíadas–ele, sem razão; eu, coberto de razões: Para o bom discurso, não obstante o reconhecido merecimento do homenageado, faltam-me ‘o engenho e a arte’, de que Camões se declarou despossuído , mas detinha em escala genial. Terei, então, ao menos, todo empenho em não impor aos meus pares, a fadiga de um discurso longo.

E na prossecução desse desiderato, o que pode dar consistência à minha saudação, não são nem os atributos da fala nem, muito menos, os do orador-(este, como dizia Vieira no Sermão da Sexagésima, incapaz de ‘fazer fruto nos ouvidos’ de quem assiste)- mas a própria história pessoal do homenageado, esta sim, há de fazer fruto.

É sempre protocolar, em ocasiões como esta, uma sinopse da vida funcional do destinatário da homenagem. Neste momento, contudo, essa retrospectiva há de ser feita, não por força dos mandamentos do protocolo ou da convenção, mas pela impositiva circunstância de que –ainda em paráfrase aCamões- é do homenageado que ‘valores mais altos se alevantam’.

Assim, o exame de sua trajetória nos mostrará que José de Arruda Silveira Filho, paulistano de nascimento, que teve acesso às primeiras letras no Instituto Dom Bosco da Praça Coronel Fernando Prestes, ingressou no Ministério Público em 1975, como décimo colocado entre 1300 candidatos a 34 vagas, esó o deixou em 2011. Dedicou, portanto, 36 anos de sua existência, à nossa Instituição. E não a deixou por obra de sua própria vontade, mas por determinação das leis que regem nossa vinculação ao serviço público, e nos impossibilitam a continuidade na ativa após a idade para tanto fixada -que é tardia para alguns e precoce para outros, como para o nosso homenageado, cujo desejo era continuar.

Ao longo de sua permanência entre nós, trilhou os caminhos que todos trilhamos, vivenciando o cotidiano atribulado do foro, tanto nas pequenas como nas grandes cidades, indo além, no entanto, como adiante veremos.

Seu itinerário começa em Osasco, sede da 4ª Circunscrição Judiciária do Estado, onde se viu nomeado 2º promotor público substituto. As dificuldades próprias daprimeira entrância foram vividas na bucólica São Pedro, contígua à estância do mesmo nome, notória por suas águas e, por isso mesmo, particularmente creio, muito teria agradado ao grande Rabindranath Tagore, primeiro asiático a conquistar o Nobel de Literatura em 1913, para quem “os homens sábios e prudentes vivem perto da água e longe dos parentes”. Permitam-me os presentes, em atmosfera tão solene, a irreverência desta jocosa citação. É só uma inocente brincadeira; todavia, oportuno é lembrar que algumas pilhérias têm fundo de verdade.

Em Mairiporã, entranhada nas montanhas que circundam a capital, cumpriu a etapa da segunda entrância. Isto foi em 1978, período de notável ampliação nos quadros do Ministério Público e de grande movimentação na carreira. Sua terceira entrância teve lugar na capital, como 20º promotor público auxiliar. Eram trinta desses cargos até 1982, quando se deu sua extinção, na amplitude de uma reforma administrativa profunda, que elevou para cento e setenta e dois o número de procuradores de justiça. Arruda chegou à capital (entrância especial), como 155º promotor público, em março de 1979 onde, entre outras funções, foi também promotor distrital da Casa Verde, depois chamado curador geral regional de Santana. A Segunda Instância o recebeu em 1985, portanto com 10 anos de carreira, tornando-se procurador de Justiça da área criminal, cargo hoje denominado 6º procurador de Justiça da Procuradoria Criminal. Ocupou a vaga deixada por outro procurador de justiça nobre e valoroso, o doutor José Roberto Baraúna. Como agente de instância superior representou o procurador-geral de Justiça em várias câmaras e grupos de câmaras do extinto Tribunal de Alçada Criminal e do Tribunal de Justiça.

Em parte, como se vê, sua carreira guarda semelhanças com as de muitos de nós. Todavia, seu contributo à Instituição também foi prestado nas áreas administrativa e de administração superior, desincumbindo-se de várias e numerosas missões, ao longo de seus profícuos anos de atividade funcional. Entre 1991 e 1995, foi supervisor do CAEX -Centro de Acompanhamento à Execução- e Coordenador de dois Centros de Apoio Operacional; o das Promotorias de Justiça do Consumidor e o das Promotorias de Justiça Criminais da Capital e da Grande São Paulo. Elegeu-se membro do Conselho Superior do Ministério Público nos períodos de 1996/1997, quando tive o privilégio de com ele compartilhar a composição daquele órgão, e depois, em 2004/2005, quando foi o mais votado dos conselheiros eleitos pelo Órgão Especial. Antes de se tornar membro nato deste colegiado, sucessivas vezes viu-se escolhido por seus pares para compô-lo.

Homem do trabalho, mas também do estudo, manteve-se na Alemanha, às suas próprias expensas, durante outubro de 1993, para participar de ciclo de Estudos sobre Combate ao Crime em Cidades Grandes.

Homem do trabalho, do estudo, mas também das lutas classistas, integrou a diretoria da Associação Paulista do Ministério Público, trabalhando pela classe, pela entidadee pela Instituição, no segundo período de presidência de Luiz Antonio Fleury Filho.

Homem do trabalho, do estudo, das lutas classistas e, portanto, versátil e polivalente, teve experiência de atuação pública fora de nossa carreira, exercendo, entre 1985 e 1989, o cargo de coordenador de Assuntos Judiciários, da Secretaria Municipal de Defesa Social da Prefeitura de São Paulo, quando era prefeito o ex-presidente Jânio da Silva Quadros.

Antes de vir para o Ministério Público, conhecera também as asperezas da advocacia, tendo sido advogado e depois sócio do Escritório de Advocacia do doutor Américo Porto Alegre, afamado profissional da época. Sua militância nas lides da advocacia durou quase dez anos. Durante o Curso de Direito, na Faculdade de Direito da Universidade Mackenzie, fora solicitador acadêmico, tendo, ainda, entre 1965/1966, curta experiência na carreira policial, como delegado de polícia estagiário, lotado no 3º Distrito Policial da capital.

Por tais registros curriculares fica bem nítido que, ao ingressar no Ministério Público, sobrava-lhe preparo não apenas no que respeita à formação acadêmica, mas tambémmaturidade e experiência para os embates institucionais, visto que, há bom tempo, achava-se nas trincheiras da luta pela vida.

No biênio final de seus 36 anos de trabalho no Ministério Público, nós o encontramos nas funções de secretário executivo do Órgão Especial do Colégio de Procuradores de Justiça, posição prestigiosa e de grandes responsabilidades, em cujo provimento os membros de segunda instância da Instituição sempre se pautaram por critérios extremamente rigorosos, bastando lembrar que esse cargo foi ocupado antes, dentre outros que poderiam ser também lembrados,por Amaro Alves de Almeida Filho, Nicolau Zarif, Julio Francisco dos Reis, Newton Alves de Oliveira e Irineu Roberto da Costa Lopes, achando-se presentemente nas mãos de Pedro Franco de Campos, paradigma de promotor combativo, homem fiel aos amigos e aos seus princípios, sempre engajado nos embates a bem da Instituição a que pertencemos.

Espírito com sede de horizontes, inquieto como nuvem buscando céus, vigoroso, dinâmico, Arruda, ao deixar o Ministério Público, não se entregou ao ócio contemplativo da reforma, mas foi em busca de novas missões. E hoje podemos encontrá-lo como Superintendente Geral da Fundação de Apoio à Escola Superior de Contas –FECONTAS, do Tribunal de Contas do Município de São Paulo, em cujos misteres, com inteira certeza, haverá de reeditar a mesma atuação profícua, reta, dedicada, que marcou sua longa permanência entre nós.

Prezado Amigo! Você se retira do nosso convívio cotidiano, mas não se ausenta de nossa lembrança, não se exclui de nosso apreço, não se expulsa de nossa estima, não se afasta de nossa gratidão e, de certo modo, na verdade, nem mesmo deixa este belo edifício Campos Salles em que se instala o Ministério Público paulista. É que você apenas muda de lugar. Das salas, dos corredores, dos gabinetes, você, tão somente, se transfere para a galeria de retratos.

As figuras fortes, as figuras de peso, os homens e mulheres dedicados às boas obras, engajados nos combates por causas nobres, entregues a ideais edificantes, de algum modo sempre continuam habitando o chão que os seus pés pisaram. Lembremo-nos, por exemplo, da velha Vila Rica de Ouro Preto, incrustada nas montanhas das Minas Gerais, de cujas alturas tão bem se contempla o Brasil. Nas ladeiras sinuosas que atravessam o casario colonial e perpassam os templos barrocos espalhados pelas colinas, ainda se ouvem nos ares os passos silenciosos dos inconfidentes, os sussurros de suas promessas de liberdade, os murmúrios de sua conspiração por uma Pátria livre. É como uma mágica de transposição no tempo. É como se as almas dos homens impregnassem os locais onde viveram suas histórias. Portanto, amigo Arruda, de algum modo, você estará aqui.

A propósito, aludi, no início de minha fala, ao caráter polissêmico do vocábulo discurso. E há pouco registrei que você deixa os gabinetes e se eleva à galeria dos retratos. Por coincidência, eis outro vocábulo de significados múltiplos, de presença frequente nos dicionários da arquitetura, da museologia, da história e de outras ciências do conhecimento. Tomo esse vocábulo no seu sentido mais originário, de galilaea,do latim clássico em declínio, de quando os cimbros, bárbaros germânicos, deflagraram, a partir das Gálias, a invasão do império romano. E, então, a etimologia nos diz que ‘galeria’ ou galilaea significava, além de átrio, também claustro de igreja, sinônimo de templo. E a palavra templo sempre nos remete às idéias de perpetuidade, de imortalidade, de permanência, de duradoura existência das coisas e dos seres. Quem sabe...não será por isso que ao contemplarmos os retratos de uma galeria, sejam eles obras da pintura ou das técnicas fotográficas, temos sempre a impressão de que os pares de olhos nos contemplam, nos espiam, acompanham nossos passos, seguem nossos movimentos, espreitam nossos gestos e se cruzam com os nossos olhos num verdadeiro prodígio de encontro do passado e do presente, como se ali se estabelecesse uma intersecção do tempo, das várias dimensões temporais!

Os olhares que irradiam dos retratos das galerias podem parecer fixos, imóveis, pertencentes a outro tempo, mas assim parecerão apenas aos desavisados, visto que para os atentos, os olhares das galerias são testemunhas do que fazemos, e têm eles o direito de nos vigiar, porque afinal somos os legatários de sua obra. É como disse Benthan, ‘tudo que existe teve um começo’, ou como afirmou Cícero, ‘não saber o que aconteceu antes de nós é continuar sempre criança’. Se temos responsabilidades para com o passado, e também para com o futuro, e é certo que as temos, conclui-se ser muito natural que os olhares das galerias estejam postos sobre nós. Afinal, são os olhares dos combatentes que chegaram ao front antes que nós, que realizaram sua parte e nos legaram sua obra. São os olhos de amigos, de líderes de suas gerações, de homens e mulheres da luta e do trabalho, que serviram, que contribuíram, e que deixaram nas pilastras de sustentação do templo, as marcas de suas mãos e a argamassa de suas crenças.

A partir de agora, dileto amigo, um novo par de olhos vai se incorporar à galeria. Assim, para nós, você estará lá, e lá estandovocê continuará aqui, ainda e sempre, conosco.

Nós, que permanecemos, devemos lhe dizer: -Muito obrigado pelo seu trabalho, pela sua dedicação, pelo seu devotamento à nossa causa comum.

Não apenas sua esposa Laís e seus filhos Mauro, Fernando e Marcio sentem de você justificado orgulho. Nós, seus companheiros de jornada profissional, também sentimos. Nós, amigos de amizades construídas na faina diária do combate pela restauração dos direitos enfermos (porque só direitos feridos batem às portas do foro), partilhamos esse mesmo sentimento de gáudio e de júbilo por suas vitórias e realizações.

Certamente violei meu próprio voto de brevidade; estasaudação já se alonga por tempo indevido. Encerro-a com a frase que dá início a um dos mais belos contos da literatura brasileira- A Terceira Margem do Rio- da criação poderosa de Guimarães Rosa. De você, meu caro amigo, poderão seus filhos, no futuro, dizer o mesmo que diz do pai o narrador-personagem, ao início do conto –‘Nosso pai era homem cumpridor, ordeiro, positivo; e sido assim desde mocinho e menino, pelo que testemunharam as diversas sensatas pessoas, quando indaguei a informação’.