PROCURADORIA-GERAL DE JUSTIÇA

Abertura do 13º Congresso do Meio Ambiente e 7º Congresso de Habitação e Urbanismo 10/2009 - Washington Novaes


O URBANISMO E O MEIO AMBIENTE

Washington Novaes

Agradeço, muito honrado, o convite para participar desta abertura dos congressos do meio ambiente e de habitação e urbanismo.

O tema que me foi proposto é “O urbanismo e o meio ambiente”.

Começo então, colocando como uma espécie de epígrafe, uma frase do antropólogo basco Julio Baroja. Segundo ele, “a grande cidade começa por nos roubar o essencial: a visão da nossa própria sombra e o ruído dos nossos passos.”

E nós já nem nos apercebemos da dramaticidade dessas perdas.

Que conseqüências terá, em nossa psicologia, perder a intimidade com a nossa sombra, com o escuro, com o não-eu ? Que significará a perda dessa relação com a luz que vem do espaço infinito – como veio ou vem do infinito tudo o que está em nosso corpo ou nele ingressa ? O que estamos perdendo ao não mais perceber o som da nossa relação física com o que está debaixo dos nossos pés ? Certamente essas perdas contribuem para o nosso distanciamento do mundo concreto. E para a passividade com que nele vamos presenciando transformações que nos isolam uns dos outros, nos ameaçam, nos amedrontam. E levam a vida urbana a tornar-se cada vez mais um enigma desafiador.

Para entender melhor o quadro geral, vale a pena recorrermos mais uma vez à tese brilhante do sociólogo José de Souza Martins: as cidades brasileiras, especialmente as grandes cidades, não têm macropolíticas que definam rumos adequados; são regidas por lógicas e interesses de setores específicos, como os do setor de transportes, inclusive da sua indústria; ou as lógicas e interesses da incorporação imobiliária; ou da construção em geral. Podem ser também as lógicas de microinteresses localizados, que oferecem em troca os votos nas eleições – para conseguir a pavimentação de ruas ou a implantação de serviços públicos.

Sejam quais forem os caminhos dessas micropolíticas – vamos chamá-las assim –, são pesados os custos, que podem chegar m certos momentos e circunstâncias a surtos temporários e setoriais de ingovernabilidade – seja quanto moradores revoltados bloqueiam o acesso a um bairro, seja quando perueiros ou ambulantes fecham ruas, seja ainda quando o crime organizado manifesta, por esse caminho, seu inconformismo com determinada ação policial. Mas pode ser pior: a ingovernabilidade pode ser permanente quando se aceita o domínio territorial permanente de certas áreas pelo tráfico de drogas, por exemplo – como em parte dos morros do Rio de Janeiro.

Para a sociedade, a ausência de macropolíticas e a prevalência de interesses que se distanciam do coletivo costuma resultar em problemas ambientais graves; em perda da qualidade de vida; em custos para a saúde; em desperdícios brutais; e em enormes custos financeiros que lhe chegam através da administração pública, na tentativa de minimizar as grandes questões.

Pode-se começar esmiuçando a lógica da prevalência do transporte individual, em detrimento do coletivo e, ainda mais grave, dos direitos de cerca de um terço das pessoas que continuam a deslocar-se a pé – sem espaço, sem respeito, sem direitos.

A frota brasileira de automóveis cresceu 38% desde 1990 e chegou a 27,8 milhões, quando no mesmo espaço de tempo a população nacional aumentou 12,7%. Hoje, nem os 26% da frota que têm até três anos desde a fabricação estão adaptados a padrões mais rigorosos de emissões de poluentes, embora eles fossem exigidos por regulamentação de 2002. 11% têm entre 4 e 5 anos – e também poderiam estar adaptados. E 35% têm mais de 10 anos – o que significa padrões muito altos de emissão de poluentes. Mais grave ainda: a frota de motocicletas cresceu 243% entre 2000 e 2008, para chegar a 8,55 milhões – com níveis de emissão ainda mais altos.

E que se faz diante de tal quadro ? A nova regulamentação, há poucas semanas, concedeu mais três e quatro anos a veículos a diesel e gasolina para que reduzam suas emissões. Mas quando chegarem lá, ainda continuarão aos padrões já hoje exigidos na Europa. Serão nossos direitos menores que os dos europeus ?

Quando se examina essa questão pelo ângulo do desperdício, a visão não nos deixa menos perplexos. Por que nossas políticas continuam a privilegiar o transporte individual, até concedendo isenção de impostos – sem nenhuma exigência de contrapartida – a esse setor de vendas, quando não se ignoram os imensos desperdícios dessa modalidade ? Não sabemos que 90% da energia de um carro é para transportar ele mesmo e não o passageiro ? Não sabemos que ele consomo quatro vezes mais energia que o metrô, por exemplo, para transportar uma pessoa ? Não sabemos que o automóvel é um investimento que permanece ocioso, na média dos casos, em 80% do tempo ? Não sabemos que, somadas vias públicas, garages e estacionamentos os veículos já ocupam mais de 50% do espaço das grandes cidades – transformam-se em fim, em lugar de serem apenas um meio ?

E o desperdício de tempo e dinheiro ? Um especialista – Nelson Choueri – já fez as contas: na cidade de São Paulo, 5 milhões de pessoas gastam em média duas horas por dia no transporte -, portanto, 10 milhões de horas por dia, ao todo; se atribuir hoje um valor médio de 8 reais por hora de trabalho, serão 80 milhões de reais por dia desperdiçados; ou dois bilhões de reais por mês; ou mais de 20 bilhões por ano. Se pudesse aplicar esse valor na expansão das linhas de metrô, em pouco tempo a cidade poderia estar toda servida por esse meio coletivo.

E que solução se está pretendendo dar à questão do transporte ? Nenhuma. A previsão mais próxima é de aumento de 5 milhões de veículos, para os quais se pede a prorrogação da isenção do imposto sobre produtos industrializados, que já custou ao governo,m desde o início da crise econômico-financeira, 5,6% do produto interno bruto, em torno de 70 bilhões de reais. Só a cidade de São Paulo chegará a 8 milhões de veículos, com mais emissões e mais problemas de várias ordens.

Um deles estará nos custos para o sistema de saúde, que poder público tem de assumir e repassar para toda a sociedade, inclusive para os que não têm veículos individuais. As estimativas são de um bilhão de reais por ano.

Os últimos estudos divulgados dizem que 60% da população paulista vivem, em 94 municípios, em áreas saturadas pela poluição veicular, especialmente pelo ozônio. Essa poluição gerada pelos veículos, mais as emissões industriais e a poluição das queimadas de canaviais, levam ao envelhecimento precoce dos pulmões, doenças e respiratórias e enfizemas, segundo o Laboratório de Poluição Atmosférica da Universidade de São Paulo; na cidade de São Paulo,, geram 20 mortes por dia; nas seis maiores regiões metropolitanas do país a 11 mil mortes anuais.

Não é só. O índice de poeira fina registrado em São Paulo é mais de três vezes mais alto que o máximo admitido nos Estados Unidos. Nas avenidas marginais da cidade, nos momentos de congestionamento, chega a ser quase dez vezes mais alto. E o índice de mortes pode ser muito mais alto com tais índices. Uma redução de 10 por cento na concentração de partículas, diz a Organização Mundial de Saúde, pode traduzir-se em mais 7,3 meses na expectativa média de vida das pessoas. Em Carta recente ao ministro do Meio Ambiente, a Sociedade Brasileira de Cardiologia enfatizou que enfrentar um congestionamento de trânsito pode equivaler a ingerir a fumaça de oito cigarros – e aumenta a possibilidade de infartos e processos coronarianos; 20% das mortes por essa causa são aceleradas pela má qualidade do ar.

A medicina – especialmente a psicanálise – também já se preocupa com a ocupação do espaço público e privado pelo transporte e pelas megaconstruções. Que consequências psicossomáticas têm para as crianças, por exemplo, a perda do espaço público e da convivência, nele, com outras crianças? Que conseqüências imunológicas pode estar tendo esse modo de viver? E quando se trata de idosos, confinados em gavetas enfumaçadas, sem possibilidade de ir à rua, para não serem maltratados ou assaltados? Que dizer dos deficientes físicos, então?

Mas a preocupação não deve parar neles, apenas. Pode-se perguntar: que aconteceria nas grandes cidades se por uma razão qualquer as pessoas ficassem privadas da televisão, que lhes permite ficar em casa em convívio relativamente pacífico ? Não poderiam sair todas às ruas, por muitos motivos. Mas que aconteceria com o convívio doméstico sem essa grande reguladora da vida em sociedade, hoje ?

Adiante. A prevalência do transporte individual e dos interesses imobiliários tem levado também à impermeabilização quase total do solo urbano com o asfalto e as construções. E isso tem conseqüências

cada vez mais graves com a freqüência maior dos chamados eventos extremos – grandes volumes de chuvas que caem em curto espaço de tempo.A água não tem mais onde infiltrar-se, nem encontra redes de drenagem suficientes e desimpedidas de resíduos; tem de correr para os fundos de vales, onde encontra leitos assoreados, estreitados, retificados, que não suportam sequer seu fluxo habitual de água, quanto mais os imensos volumes que lhes chegam nesses momentos. As inundações são fatais, com todas as conseqüências a que vamos nos habituando.

Os climatologistas já nos dizem há muito tempo que as grandes cidades formam ilhas de calor que atraem esses eventos extremos. Sem vegetação, impermeabilizadas, com tráfego intenso, chegam a ter temperaturas até 6 graus mais altas que as áreas vegetadas mais próximas; por isso, é para as áreas mais urbanizadas que se dirigem preferencialmente as chuvas. Mas nada fazemos para evitar a situação. Nem temos instituições suficientemente aparelhadas para nos alertar da possibilidade próxima desses eventos, a tempo de que a população se prepare.

Pior ainda, deixamos que encostas sejam desmatadas e ocupadas por habitações, juntamente com os topos de morros, formando as perigosíssimas áreas de risco que produzem cada vez mais vítimas em tantas partes do Brasil. Permitimos que áreas de preservação permanente – fundamentais para a conservação de mananciais e reservatórios – sejam ocupadas irregularmente. Só na Região Metropolitana de São Paulo são mais de um milhão de pessoas. Depois, abrandamos a legislação para permitir a legalização da posse, a pretexto de permitir a implantação de redes de saneamento básico, que raramente se concretizam.

E assim vamos, em São Paulo e no Rio de Janeiro, em Belo Horizonte e Salvador, em Recife ou em Belém, no Sul e no Sudeste, até no Nordeste. Mas nem sequer dispomos de redes de radares meteorológicos suficientes para nos prevenir dos eventos problemáticos e cuidar da desocupação. Nosso investimento em ciência e tecnologia voltadas para o clima é ridículo. Não cuidamos da adaptação das cidades às novas condições. Não mudamos nossos padrões de construção, insuficientes para suportar os imensos volumes de água, nas cidades e nas rodovias. Só temos alguma instituição de defesa civil – em geral, corpo de bombeiros – em apenas 90 de mais de 5.500 municípios brasileiros.

Em todo o país, a expansão urbana continua a ser ditada pelos interesses da especulação imobiliária, não por políticas adequadas. Moro em uma capital – Goiânia - que tem, junto com as pequenas cidades conurbadas, mais de 300 mil lotes vagos em áreas já dotadas de infra-estruturas urbanas. Mas todos os dias se aprovam novos loteamentos em áreas sem nenhuma infra-estrutura – em geral, transferindo para o poder público – e a sociedade, que paga impostos – o custo de todas as infra-estruturas – energia, sistema vário, transporte, educação, saúde, segurança, saneamento, lazer e tudo o mais. É profundamente injusto, mas segue assim. Agravado pelo fato e que toda a sociedade ainda tem de pagar por obras – como viadutos, túneis, pontes etc. – que só beneficiariam – se funcionassem – apenas os proprietários do transporte individual. Mas que, em geral, servem apenas para mudar de lugar os congestionamentos, como advertiu há 30 anos o arquiteto Jaime Lerner.

Pode-se retornar a Julio Baroja para dizer que a grande cidade também nos rouba o direito à escuridão. A intensidade de luz artificial no mundo triplicou em poucas décadas. O ser urbano consegue, na melhor das hipóteses, vislumbrar meia dúzia de estrelas, algum pedaço de lua em raros momentos; o ser rural já consegue ver algumas dezenas de estrelas; mas é preciso ir a lugares remotos – privilégio de muito poucos – para saber o que é o esplendor do céu noturno, suas milhares de estrelas, a possibilidade de soltar a imaginação até outros mundos e sua origem. Mas a ausência do escuro – começa a nos dizer a medicina – já é causa de doenças graves, pois a produção de melatonina – que protege do câncer - no corpo humano depende dessas condições.

O brilhante filósofo e psicanalista Alberto Coelho de Souza, já falecido, costumava dizer que a perda mais grave e injusta no nosso modo de viver é a da simplicidade – porque é preciso ser muito rico para refugiar-se em um lugar simples, protegido, em contato com a natureza e as coisas fundamentais.

Nesse panorama tão complexo e inquietante, é preciso ressaltar que a sociedade hoje precisa de apoio para conseguir sair da postura que tenho chamado de retórica da indignação. Ela se indigna com o que acontece no mundo da política, da administração pública e dos negócios em geral e com os reflexos negativos de tudo - nas áreas urbanas e em suas vidas. Fica indignada com a má aplicação dos recursos públicos que advêm dos impostos por ela pagos. Mas não consegue transformar em ações adequadas essa inconformidade – e acaba se sentindo inerme e impotente diante dos fatos.

Por isso, precisa de ajuda, capaz de transformar seu pensamento em ação. Precisa de organização e informação que a habilitem a discutir cada problema e chegar a propostas de transformação efetiva, que ela, sociedade, leve à área da política e da administração.

Para isso, precisa fundamentalmente de órgãos como o Ministério Público – com seu acervo de informações concretas sobre a situação em cada lugar e em cada problema, que a capacitem a tomar posição e pleitear as ações necessárias.
E precisa também da universidade, das universidades, que, com seu conhecimento, levem à formulação de políticas públicas adequadas em cada lugar. Muito perseguida durante o governo militar, a universidade foi-se recolhendo progressivamente, quase apenas à função de formadora de mão de obra qualificada. Agora, com a gravidade da situação no mundo e em toda parte, a universidade precisa reabrir-se à sociedade, discutir com ela as questões relevantes, capacitá-la a formular políticas públicas necessárias. Inclusive as macropolíticas para as cidades brasileiras. E precisa levar à sociedade a informação científica sobre os problemas globais e seus reflexos em nosso país e nossas cidades. 

Mas a sociedade precisa também, nesse processo, de uma reflexão sobre ela mesma e seus formatos. Não faz sentido apenas condenar administradores e políticos se grande parte dos cidadãos – alegando até mesmo auto-defesa – se permite sonegar impostos, desrespeitar as leis do trânsito, furar filas e assim por diante. É preciso ser exemplar no nível pessoal para cobrar idêntica postura no nível político e administrativo.

Agora, podemos passar a outro âmbito complexo relacionado com nosso tema.

Estamos aqui em um espaço onde se reunem cultores do direito, defensores dos interesses públicos. Talvez seja o caso de retornar ao quadro muito grave das mudanças do clima e da insustentabilidade do uso de recursos naturais, já além da possibilidade de reposição pela biosfera terrestre – são essas as duas ameaças à sobrevivência de espécie humana, repete e repete o ex-secretário-geral da ONU, Kofi Annan. E se é assim, profundas transformações serão indispensáveis na área do Direito para enfrentar essa crise do padrão civilizatório – porque nossos modos de viver são incompatíveis com as possibilidades físicas do planeta. Estamos deteriorando os ecossistemas naturais a um ritmo nunca visto na história da humanidade. E as advertências da ciência sobre o gravíssimo quadro do clima são cada dia mais assustadoras.

Repetirei aqui parte das palavras que já disse na cerimônia de comemoração dos 50 anos de formatura da minha turma na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco.

O problema central está em que, embora já se esboce um Direito Internacional Ambiental, uma teoria da governança ambiental, não temos regras nem instituições capazes de criar procedimentos em nível planetário, com poder regulatório efetivo. E só a ética não bastará, como tem dito o presidente do Painel Intergovernamental do Clima, Rajendra Pashauri. Será preciso ter regras mandatórias para todos.

Mas como faremos para criar essas regras e instituições universais, capazes de gerar formatos compatíveis e obrigatórios em todas as partes do mundo?

Sabemos, todos, das limitações do principal fórum de negociações internacionais – a Organização das Nações Unidas, suas convenções e assembléias, onde as decisões precisam ser tomadas por consenso, que é quase impossível diante dos interesses contraditórios. Adia-se a decisão e seu alcance prático. Tem sido assim na convenção do clima, na da diversidade biológica, na da desertificação, no Protocolo de Cartagena e em outros.

Já há algum tempo, há quem proponha criar uma Organização Mundial do Meio Ambiente, separada da ONU, para tratar de questões planetárias. Mas ela esbarra nas mesmas questões que limitam a efetividade das decisões da ONU.

Da mesma forma, muitos países adiam ou esquecem a aplicação, em seu âmbito interno, de princípios já consagrados em convenções e protocolos, como o princípio da precaução ou o princípio do poluidor/pagador, que atribui a quem os gera os custos de problemas ambientais.

E o futuro será cada vez mais complexo, com a necessidade de adaptarmos nossos modos de viver aos limites planetários. Porque será preciso mudar quase tudo.

Teremos de criar novas matrizes energéticas. Programas de eficiência energética e conservação de energia para as áreas pública e privada, inclusive nas empresas. Não poderemos continuar falando nas ameaças de “apagões” esquecendo, por exemplo, estudo da Unicamp que demonstra a possibilidade de ganhar 50% da energia que consumimos hoje, com conservação e eficiência, repotenciação de usinas antigas e redução das perdas nas linhas de transmissão. Não poderemos pensar só em megausinas amazônicas ou nucleares - sem lembrar de problemas como o do lixo nuclear - ou em termelétricas altamente poluidoras. É possível e necessário poupar investimentos desnecessários nessa área para investir em saneamento, saúde, educação, ciência e tecnologia.

Precisamos pensar em programas na área de recursos hídricos, em poupar consumo de minérios que caminham para o esgotamento, rever padrões de construção, produzir veículos mais eficientes e menos poluidores, dar preferência ao transporte ferroviário.

Mas tudo precisará de novos marcos legais. Que formatos encontraremos para induzir legalmente restrições ao transporte individual e estímulos ao transporte coletivo? Novas legislações serão indispensáveis para a área de resíduos, que obriguem a redução do lixo, a reutilização de materiais, a reciclagem, a responsabilização de qualquer gerador de lixo por sua coleta e destinação.

Será preciso legislar para devolver os rios a seu curso natural – como já se faz na Europa – e impedir a ocupação de planícies naturais de inundação. Disciplinar o uso de recursos hídricos no país e evitar o desperdício, a poluição.

Quase todas essas mudanças – e muitas outras que exigiriam tempo para ser enumeradas – terão conseqüências no campo do Direito e exigirão muito de seus profissionais.

Que contribuição, por exemplo, o Brasil poderá dar para que se tenham instituições e regras que conduzam a soluções adequadas no campo das mudanças do clima? E se essas regras afetarem interesses internos? Que faremos para induzir a redução no uso de recursos naturais? Por que caminhos ?

Todas ou quase todas as mudanças provavelmente implicarão restrições à propriedade privada ou seu uso, restrições à iniciativa privada – ou imposição de novos custos. Porque em tudo terão de ser feitas contas sobre custos e sua atribuição a quem os gera ou consome produtos resultantes – e não como hoje, transferindo os custos para toda a sociedade, através dos custos do setor público.

Sabemos que nosso Direito é fundado em grande parte na proteção à propriedade privada. Que caminhos iremos propor para compatibilizar essa proteção com as necessidades do mundo de hoje? Porque cada vez mais viveremos tempos em que os interesses coletivos, mais prementes, mostrar-se-ão necessitados de proteção.
Será complexo em muitos setores – na agricultura, na pecuária, no uso da água para irrigação, no uso de insumos químicos que poluem os rios e o mar.

S os muitos estudos científicos continuarem apontando para a gravidade das perdas em nossos biomas e sua contribuição para mudanças climáticas, que faremos diante da evidência de que a reserva legal obrigatória nas propriedades é apenas uma ficção legal? Ou o que vamos fazer para que se torne efetiva? Que sistema legal vamos imaginar para conciliar a propriedade privada em certas áreas com a necessidade de proteção absoluta, desmatamento zero?

A enumeração de todas as questões que desafiam e desafiarão o Direito nas próximas décadas não é necessária, nem haveria tempo para isso.

Pode-se também concordar ou não com certas premissas que embasam a visão aqui exposta. A discussão será sempre fértil e enriquecedora. Mas não há como fugir aos desafios que já estão sobre a mesa. Eles exigirão de todos nós uma tomada de posição, capaz de reverter rumos.

Somos, queiramos ou não, solidários com tudo e com todos. E temos responsabilidades intransferíveis diante dos nossos filhos, nossos netos, das futuras gerações. O que importa é não perder tempo. Temos no máximo uns poucos anos para definir novos rumos, sob pena de graves conseqüências – dizem as pessoas que mais têm estudado essas questões.

Importa é avançar com urgência.

Muito obrigado pelo convite e pela atenção.